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Vale do Javari vive sob medo e insegurança um mês após assassinatos de Bruno e Dom
Quase um mês depois do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalistas britânico Dom Phillips, o caso ainda causa comoção em Atalaia do Norte (AM), município de pouco mais de 20 mil habitantes no extremo oeste do Amazonas.
A Folha de S.Paulo visitou novamente a localidade no Vale do Javari na semana passada, junto com uma comitiva de parlamentares que cumpriu diligências no local.
Foto: Reprodução
O principal evento da comitiva de deputados e senadores foi um encontro com lideranças indígenas na sede da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), organização para a qual Bruno trabalhava.
Durante a audiência, o local esteve cercado por agentes do Exército, da Polícia Militar e da Polícia Federal.
As forças de segurança se tornaram presença constante em Atalaia desde o início das buscas por Bruno e Dom, desaparecidos em 5 de junho. Embora o aparato tenha diminuído desde que os corpos foram encontrados, no dia 13, o tamanho do efetivo na localidade é sem precedentes, segundo moradores.
A sensação de segurança, porém, se restringe ao centro urbano, dizem pessoas ouvidas reservadamente pela Folha de S.Paulo. Subindo o rio Itaquaí, onde Bruno e Dom morreram, ou o Javari, a tensão segue inalterada desde a morte dos dois, de acordo com moradores. Indígenas, por exemplo, relatam medo nos trajetos que precisam fazer pelos rios. Quem viaja pelos rios da região, dizem lideranças, busca fazer o mínimo possível de paradas pelo caminho.
Os servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) que atuam na região, por sua vez, pedem reforço na segurança.
A tensão afeta também pescadores. Mesmo os que atuam em áreas autorizadas relatam medo de abordagens por agentes de segurança nos trajetos que fazem pelos rios -é comum pessoas na região levarem consigo armas em situação irregular.
A principal hipótese investigatória das autoridades é que a morte de Bruno e Dom tenha conexão com a prática da pesca ilegal na região da terra indígena do Vale do Javari, uma vez que o indigenista atuava na Univaja no combate à extração irregular do pirarucu do território.
Foram presos suspeitos de participação no crime até aqui Amarildo Oliveira, o Pelado, seu irmão, Oseney da Costa de Oliveira, e Jefferson da Silva Lima, conhecido como Pelado da Dinha, que confessou o crime em seguida.
Antes do encontro entre parlamentares e indígenas na sede da associação, os organizadores solicitaram que políticos de Atalaia do Norte e também da vizinha Benjamin Constant deixassem o local para garantir que nenhuma liderança se sentisse desconfortável durante as falas.
Questionada, a Prefeitura de Atalaia do Norte disse que tem boa relação com os indígenas, que se reuniu com deputados em outro momento e que "vai continuar trabalhando e ajudando no que for necessário".
Os relatos dão conta que a pesca e caça ilegal, assim como o tráfico da região, estão irritados com a forte presença dos agentes estatais no local, e por isso, os indígenas sentem medo de que sofram represálias.
Representantes da Univaja têm recebido relatos e até bilhetes anônimos alertando sobre pontos de maior tensão nos rios. A sensação é a de que se trata de uma questão de tempo até que novos casos de violência sejam registrados.
É uma região que vive, um mês após o caso, um clima de tensão velada e silenciosa; como se a violência estivesse à espreita para tomar conta do local tão logo as forças de segurança forem embora.
Um indigenista define: são os efeitos da presença do Estado em uma região acostumada a viver às suas margens.
"Aqui, nesta faixa de fronteira, tudo pode acontecer. Uma região onde reinam atividades ilícitas. Tudo isso faz com que a gente viva inseguro neste momento, e não dá para hoje esquecer o que aconteceu ontem", diz Manoel Chorimpa, da Univaja.
"Sei que várias consequências ainda vão acontecer, por isso é importante a efetivação da atuação da segurança do Estado na região", completa.
Darci Marubo, protagonista na luta pela demarcação da terra indígena do Vale do Javari na década de 1990, afirma ser preciso uma fiscalização maior, com reforço nas bases das entradas da terra indígena.
"Eu tenho 56 anos, mais da metade da minha vida é lutar. Quando demarcamos essa terra, fomos ameaçados de morte pelo narcotráfico, passei um ano sem sair de casa. Hoje, eu entro num bar e sinto medo. Que país é esse onde não posso viver por igual e com dignidade?".
Os agentes estatais admitem reservadamente que é necessário que se transforme em constante a atuação ostensiva dessas forças na região para que a violência seja efetivamente reduzida no longo prazo.
Questionado sobre novas ações permanentes adotadas no Vale do Javari, o Ministério da Defesa afirmou que o responsável por responder é o Ministério da Justiça. Procurada, a pasta não se pronunciou.
A Prefeitura de Atalaia disse que deslocou efetivo da Secretaria de Proteção e Defesa Civil para a área onde aconteceu o assassinato "enquanto for necessário", mas que a área indígena é de competência da União. A Polícia Federal e a Funai não responderam aos questionamentos da reportagem.
Em meio à tensão que existe no município, menções a Bruno comoveram lideranças indígenas no local.
"Ainda estamos de luto, o povo marubo fica de luto três meses e a gente jamais vai esquecer o Bruno. Derramaram o sangue dele no Vale do Javari. Ele era um nawa [designação para homem branco] nosso amigo; dá saudade de fazer o café para ele, sentir o cheiro de cigarro, a alegria que nunca mais vamos ver", disse Silvana Marubo.
"A gente nem gosta muito de lembrar da situação. O Bruno tinha muito carinho pelo povo mayoruna, tanto que um filho dele homenageia uma liderança nossa, a gente tinha uma relação muito próxima. A gente sente tristeza, eu não me conformo, para mim ele volta ainda, não ficou pelo meio do caminho... foi muito rápido, de repente ele morreu. Aqui era casa dele praticamente", completou Jaime Mayoruna, amigo do indigenista.
Fonte: Folha de São Paulo