Saúde
'Kit covid' leva pacientes para a fila de transplantes de fígado
As redes sociais estão cheias de depoimentos de gente que, ao apresentar sintomas de covid-19, procurou ajuda médica e saiu do consultório (público ou privado) com uma receita para o chamado “ kit covid”, que inclui o antimalárico hidroxicloroquina e o antiparasitário ivermectina. Os resultados dessa prática começam a surgir agora, nas filas de transplante de fígado: pacientes com a chamada hepatite medicamentosa, causada pelo uso indiscriminado desses remédios.
Em São Paulo, cinco pacientes estavam à espera para receber um fígado novo – infectados por covid-19, todos receberam prescrição de drogas para o dito “ tratamento precoce”. Quatro foram atendidos no HC-USP (dois morreram antes do transplante) e um, no HC-Unicamp.
“Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos. Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa; esses remédios destroem os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino", disse ao jornal O Estado de S. Paulo o médico Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC-USP).
Segundo o médico, "o nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes [que atendemos] está com mais de 40”.
Explosão
O “kit covid” (sem eficácia comprovada contra a covid-19) tem ainda o antibiótico azitromicina e o anti-inflamatório e imunosupressor prednisolona – este último, sendo receitado para pacientes com histórico de controle da glicemia, o que pode ser fatal.
As vendas dos medicamentos usados no "tratamento precoce" explodiram em 2020, em comparação com o ano anterior: segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF), a venda de hidroxicloroquina subiu 107%, mas foi a ivermectina que teve o maior salto: 557% de aumento – dezembro, segundo a entidade, foi o mês em que mais se comprou o antiparasitário.
A Merck, laboratório que detém a patente do remédio, chegou a publicar um comunicado dizendo não acreditar que "os dados disponíveis suportem a segurança e eficácia da ivermectina além das doses e populações indicadas nas informações de prescrição aprovadas pela agência reguladora”.
Sem efeito
“Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo”, disse ao Estadão a neurologista Verena Subtil Viuniski.
Um desses ingredientes pode ter consequências nefastas para o tratamento de outras doenças que nada têm a ver com a covid-19 é a azitromicina, um antibiótico que foi reprovado no estudo clínico Recovery, da Organização Mundial de Saúde (OMS). Esta e outras drogas de amplo espectro (que servem para diversos tipos de bactérias) estão sendo largamente usados desde o início da pandemia.
"Já tínhamos o problema da resistência microbiana antes. Em virtude da covid-19, muitos antibióticos foram receitados. Em um futuro não muito distante, vamos ter um problema mais sério do que a doença em si", disse à BBC o biólogo molecular e geneticista Victor Augustus Marin.
Mesmo com recomendações da OMS para que o uso dessas drogas no tratamento de covid-19 seja usado de modo restrito em ocasiões absolutamente necessárias, o cenário que se desenha é sombrio: segundo a entidade, até 2050, dez milhões de pessoas morrerão de doenças resistentes a antibióticos. Anualmente, 700 mil pessoas são vítimas da resistência microbiana em todo o mundo.
Fonte: Tecmundo