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Caso Julie pode revolucionar lei de abuso de menores na França
Jovem teria sofrido estupros sistemáticos por 20 bombeiros quando tinha 13 anos. Inércia dos tribunais reflete visão peculiar da sociedade francesa sobre a sexualidade. Mas novo veredito pode ser o começo da mudança. Há semanas Corinne Leriche não consegue dormir direito. Pesadelos a sacodem do sono, e ela desenvolveu uma urticária em grande parte do corpo. Nesta quarta-feira (17/03), um tribunal francês decidirá se sua filha, identificada apenas como “Julie” nos relatos da imprensa, será reconhecida como vítima de estupro, em vez de menor de idade participante em atividade sexual consensual.
A conclusão do caso acompanhado de perto pela opinião pública da França poderá estabelecer um precedente legal para que se amplie a definição de estupro infantil na França, e conferir à jovem e sua famílía um pouco de justiça, após mais de uma década.
“É insuportável, esses eventos horrendos têm sido uma sombra sobre as nossas vidas por mais de dez anos. Tenho vontade de gritar: 'Vocês podem finalmente parar de mentir?'”, desabafou Leriche à DW.
De salvadores a algozes
A provação da família começou em abril de 2008, quando Julie, então com 13 anos, teve uma tontura na escola e desmaiou. O serviço de primeiros socorros, operado por membros do corpo de bombeiros, a levou a um hospital próximo. Porém os salvadores logo se transformaram em seus algozes, como ela contaria mais tarde à mãe.
Após o incidente na escola, Julie desenvolveu distúrbio de ansiedade social, escondia-se no quarto, em depressão profunda. Os médicos prescreveram sedativos fortes e antidepressivos. Nos dois anos seguintes, ela tentou suicídio 16 vezes.
Seus severos ataques de ansiedade exigiam a intervenção regular do serviço de ambulância, e ela foi travando uma relação de confiança com os bombeiros, eles próprios contando menos de 20 anos de idade. Mais tarde, Julie contaria à mãe como os homens passaram a explorar essa relação, ameaçando-a e convencendo-a a se encontrar com eles, para então, segundo ela, violentá-la repetidamente.
Julie disse que um deles, Pierre C., guardou o número de telefone dela e a contactava frequentemente. Mais tarde, começou a mandar fotos de si nu, e deu o número dela para os colegas.
Uma vez, um dos bombeiros disse à família que levaria Julie para dar uma volta, mas em vez disso a levou para a própria casa, onde dois colegas já esperavam. Um outro a violentou ao visitá-la na clínica psiquiátrica infantil. “Eles viam que ela estava se destruindo, e mesmo assim continuaram”, acusa Leriche.
Leniência para os acusados
Foi só dois anos mais tarde, quando os médicos suspenderam a medicação, que Julie conseguiu finalmente se confidenciar à mãe. Em julho de 2010, Corinne apresentou queixa-crime por estupro contra 20 bombeiros, todos com cerca de 20 anos de idade na época.
Desde então, contudo, apenas três deles foram investigados. O juiz acreditou na palavra dos demais, de que não sabiam que a menina tinha menos de 15 anos na época dos encontros sexuais, e não abriu inquérito. Os acusados afirmaram que Julie consentiu com o relacionamento e queria o sexo com eles. A DW tentou uma entrevista com o advogado dos homens, mas o pedido foi negado.
Durante a década seguinte, o caso tramitou lentamente de instância a instância. Em julho de 2019, foi transferido para um tribunal penal, com o juiz alegando não ter sido possível provar que a adolescente não consentira com o relacionamento sexual.
A transferência automaticamente abrandou as acusações, de estupro para agressão sexual, e consequentemente a pena máxima, de 20 para sete anos de prisão. A famíla apelou da decisão, e em 17 de março de 2021 a Cour de Cassation, o supremo tribunal francês para casos criminais, dará seu veredito final.
Crianças sob suspeita
Tal cenário seria impensável em países como a Alemanha ou o Brasil, cuja lei estabelece uma idade clara de consentimento. Na França, por sua vez, o conceito de maioridade sexual não vigora.
“É contra a lei adultos terem relação sexual com crianças menores de 15 anos”, explica o advogado Pascal Cussigh, presidente da associação de direitos infantis CDP-Enfance. Entretanto o delito não é automaticamente considerado estupro, e os condenados costumam receber penas mais brandas.
“Para condenar alguém por estupro, é preciso provar que houve emprego de força, que a pessoa foi ameaçada ou enganada para fazer sexo. Senão, é considerado agressão sexual.” Tal prova é ainda mais difícil no caso de Julie por ela ter levado tanto tempo para contar os fatos à mãe.
Além disso, os juízes franceses tendem naturalmente a suspeitar do testemunho de crianças, prossegue Cussigh. “Tem sido assim desde o caso de Outreau, entre 1997 e 2000, em que adultos foram acusados de estupro e agressão sexual de crianças, mas acabaram sendo absolvidos, pois se constatou que elas não haviam contado exatamente a verdade.”
No entanto, apesar de parte de seu testemunho ter sido falso, todas foram reconhecidas como vítimas de crime sexual – o que reforça o ponto de vista de que em tais casos se deve confiar no relato infantil. Apesar disso, segundo o advogado, apenas cerca de 1% dos casos de estupro infantil na França resulta em condenação.
Mudanças profundas à vista
O governo francês tem prometido que as coisas mudarão, e apresentou projetos de lei estabelecendo inequivocamente os 15 anos como idade de consentimento. Assim, qualquer adulto que tenha relações sexuais com menores estaria sujeito a ser acusado de estupro qualificado.
“Queremos proteger melhor as crianças, através de leis que sejam compatíveis com o nosso sistema legal”, afirmou uma porta-voz do Ministério da Justiça à DW. Diversas propostas parlamentares para definir uma idade de consentimento estão sendo estudadas.
Está também prevista a estipulação de uma diferença mínima entre as duas partes do relacionamento. Caso ela seja de cinco anos, como propõe o governo Emmanuel Macron, uma pessoa de 18 poderia ter sexo com outra de 14, já que a distância entre ambos seria de apenas quatro anos.
Pascal Cussigh se preocupa que uma diferença de idade tão grande possa diluir a legislação, “baixando, de fato, a idade de consentimento para 13 anos”. Ainda assim, alguns ativistas dos direitos das crianças e das mulheres acreditam que as iniciativas estão pelo menos se movendo na direção certa.
“Não há como ignorar, depois do #MeToo”
“A mentalidade do nosso país está mudando de forma lenta, porém decidida”, confirma Sophie Barre, do grupo feminista NousToutes, que sistematicamente organiza manifestações de respaldo a Julie. Para ela e outras, o caso se tornou emblemático do que está errado com o sistema jurídico francês.
“Não dá mais para olhar para o outro lado depois do movimento #MeToo e de escândalos recentes como o livro de Camille Kouchner, acusando seu padrasto, um analista político conceituado, do estupro incestuoso do irmão dela”, afirma Barre. As memórias da filha do ex-ministro do Exterior Bernard Kouchner chocaram a França ao serem publicadas em fevereiro.
A ativista, porém, deseja mais do que a definição de uma idade de consentimento: “Precisamos educar melhor os nossos policiais, juízes e psicólogos para reconhecerem as vítimas de estupro desde cedo.”
Com o veredito desta quarta-feira, Corinne Leriche espera que sua filha finalmente receba justiça. “Mas se o nosso apelo for rejeitado, a nossa família vai-se embora da França. Não podemos viver num país em que o sistema de Justiça nos pisoteia e humilha.”
Fonte: Revista Planeta